sexta-feira, 5 de abril de 2013

" SEMPRE GOSTEI DE TI "

"Sempre gostei de ti 
Passados muitos anos , ela disse-lhe 
- Sempre gostei de ti, sabias ?
e ele espantado : nem sonhava, era muito novo ,quinze ou dezasseis anos, não reparava nessas coisas. Ficou a olhá-la sem acreditar.
- A sério ?
e o que era uma senhora de cinquenta anos que engordara, ganhara rugas, pintava o cabelo, mantinha, quando muito, uma sombra de sorriso de dantes no sorriso de agora, as mesmas covinhas nas bochechas, os mesmos olhos redondos mas com pálpebras diferentes, pregas injustas no pescoço, essas sardas que , a partir de certa altura, começam a aparecer nas costas das mãos, pernas espessas , sem tornozelos, onde pernas estreitas dantes, a cintura substituída por um relevo redondo ,. Espantou-se também com isso , com a crueldade das mudanças dela, esquecido , por instantes , da crueldade das mudanças dele, o cabelo ralo, os óculos, a cicatriz da operação a uma coisa na pele a que torceram o nariz no hospital e, no entanto correu bem, ficou o lábio um bocadinho repuxado , ficou uma órbita mais redonda do que a outra , mas agora precisava que o vissem de ano a ano "
          Crónica
António Lobo Antunes
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- " Alterei-me muito, não foi ?
e a tremura das pálpebras a aumentar , uma lágrima , desta feita presente, a embaciar-lhe o sorriso.
- Sempre gostei de ti
a lágrima apanhada com o mindinho
- Interessa-me lá como tu estás agora 
não lhe interessava a ela como ele era agora mas interessava-lhe a ele como ela era agora , meu Deus o que faço eu com o convite do almoço , desculpou-se 
- O melhor é dares-me o teu telefone e eu depois ligo
e não ligar, é evidente, sobretudo não ligar, gorduras, rugas, as raízes do cabelo grisalhas , nem pensar em ligar , para quê , para sentir pena de si mesmo , para sentir pena dela, recebeu uma página de agenda com um número escrito e enfiou-o na algibeira sem olhar para ele
- Assim que nos separarmos vai fora "
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Aqui vos deixamos um excerto duma crónica de António Lobo Antunes , publicada na Visão desta semana.  

1 comentário:

Teresa Monteiro disse...

A vida prega uma grande partida às mulheres...que bem retratada nesta crónica...que bem!! é mesmo assim a vida: eles aos 50, aos 60, aos 70, sempre sexualmente ilegíveis...elas...:mas quem é que quer uma mulher de 50 anos??? Se bem que às vezes não é bem assim...graças a Deus...:)Bem haja António LA por esse dom que tem!!! Sou sua fã...preciso urgentemente ouvir uma entrevista sua na TV...são sempre exemplares...ensinam, ensinam, ensinam e não tem qualquer medo de se expor!!!