segunda-feira, 2 de novembro de 2009

A cigarra e a formiga


 Ontem às I0 da manhã enquanto esperava o Metro:
- Então já terminou, por hoje, o seu trabalho? Ao domingo sai mais tarde,não é?
-Durante a semana limpo as escadas das 7 às 9. Sábado e domingo uma hora mais tarde.
-Agora vai descansar, não é?
-Vou já para casa. Tenho o meu filho para tratar.
-Filho? Mas é tão nova...
-Vou fazer 20 anos. Moro em Odivelas. Ainda é longe...
-E o seu marido?
-Está em França.Foi trabalhar para lá.
-Manda dinheiro?
-No princípio ainda mandou. Agora nunca mais disse nada.
O Metro chegou. Entrámos e ficámos sentadas lado a lado. Caladas. Que dizer? Tão novinha! Mas
bonitinha e muito bem arranjada. Que mulatinha tão simpática! Mas, que vida! Coitada!
Eis que reparo na que está sentada à nossa frente. Também uma jovem mulatinha. Mas que diferença!
Toda ela é um esplendor. Enfeitada ! Enfeitada! Brincos. Colares. Pulseiras.Auscultadores vermelhos.
Ouvia música. Claro.E acompanhava o ritmo com a cabeça.  Pára subitamente. A! O telefone.
-Estou indo. OK.Estou indo.
Fantástica mulatinha! Vens ou vais para a festa. Com os teus ombros roliços e escurinhos bem descobertos toda tu és uma festa. Pareces saida dum livro de Jorge Amado.
Pronto. Cá as temos. Claro. "A cigarra e a formiga".
Mas ainda há formigas? Esta é uma formiga? Uma formiga à La Fontaine?
Não. Penso que esta não tem escolha. Não pode mesmo dançar e cantar porque não tem opção.
Tem um filho para criar. Tem responsabilidades. Tantas! E tão novinha!....
Então La Fontaine "já era"...Já não existem autenticas formigas....
Engano. Existem, sim senhor.Elas andam por aí construindo a pulso as suas carreiras.Não têm
tempo para festas.  Não têm. E para o Amor? E para a Família? E, para...? Mais tarde. Mais tarde.
Agora não posso. Não posso.Mais tarde. Mais tarde.
Cuidado amiguinhas. Às vezes já não se pode agarrar o tempo. Ele vai-se e não volta..
La Fontaine ainda existe. As suas fabulas são actuais. Basta nós querermos. Não é?

1 comentário:

Moi-même disse...

Como sempre... uma crónica da cidade muito oportuna, muito atenta!
Aprecio muito este seu ar atento sobre o mundo que a rodeia, o trocar uma palavra amiga com quem nem sequer conhece...sem medo, de mãos livres, mente e coração abertos. Razão tinha a S. qd me contava a forma sempre acolhedora como se dava a todos, principalmente os de vidas complexas.Ela também é um pouco assim...E eu aprecio muito ambas. A propósito de crónica da cidade, envio-lhe uma pequena história que escrevi, na passada semana, depois de ter presenciado a cena num jardim de Lisboa.

Grande angular
Claquette!
Acção!
À voz do realizador a câmara faz um big close up sobre a folha de jornal.
Foca a data. De há umas semanas.
Títulos dispersos: H1N1, eleições, Obama Prémio Nobel, crise, Saramago...
E eu, aqui de lado, tenho tempo para pensar em como cabe, tanta e a mesma coisa numa folha de jornal...todos os dias.
A cena poode ser filmada dezenas de vezes, testando planos, testando ângulos.
A câmara segue o feixe de luz, do jornal ao candeeiro público.
Retoma o jornal e, descendo, deixa ver uma estrada de rugas ladeada pela cabeleira áspera e sem côr definida e os pêlos hirsutos de umas sobrancelhas.
A câmara continua no seu ritmo descendente, revelando os socalcos da face magra, num esgar adormecido.
As peles mal tratadas de mãos sem espaço para calos.
Estirado, um corpo.
As tábuas de um banco de jardim são cama por essa noite...e outras... e outras.
Um cobertor rosa pálido envolve-se aos tropeções e deixa a descoberto a almofada improvisada.
A câmara desce, desce e encontra o chão.
Foca uma boneca de trapos. Que faz ali, uma boneca de trapos?
Companhia, por certo!
Vagarosamente a câmara afasta-se, enquanto os pombos vão debicando migalhas em arena.
Em grande plano a câmara levanta o grupo de crianças, num corropio de balouços e escorregas.
Risos, vozes.
O ar sereno de um entardecer de Outono.
A câmara vai recuando, vagarosamente, até à outra esquina da Casa da Moeda.
As filmagens prosseguirão amanhã...e depois...e depois.
Moi-même